Skip to content

Falta de Q.I.? Como ‘quem indica’ baixo trava ascensão de negros

Gerente de comunicação de uma agência governamental em Brasília, Marisa Bastos Teixeira costuma participar de reuniões de diretoria da empresa e ser a única executiva negra entre seus pares. Para ela, foi assim desde o início da carreira, nos anos 1990.

“Como executiva no Brasil tenho a impressão de estar trabalhando na Suécia ou Dinamarca. Nas empresas, os chefes e diretores costumam ser brancos, e diversidade, quando há, você só vê em escalões mais baixos”, afirma. Marisa é uma das exceções que compõem as estatísticas do mundo corporativo no Brasil. Pesquisa do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Instituto Ethos lançada em 2016 aponta que somente 4,7% dos cargos executivos são ocupados por profissionais negros, contra 94,2% de brancos.

A disparidade existe em outros escalões. Entre funcionários acima apenas de estagiários e trainees, o número de brancos é de 62,8% e de negros, 35,7%. Já 72,2% dos cargos de supervisão são ocupados por profissionais brancosos, e 25,9% por negros. Esses números estão distantes da realidade da sociedade brasileira, em que 55,4% das pessoas (ou 113 milhões de brasileiros) se declararam pretos ou pardos, segundo a mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).

Muito se fala do papel do racismo ou da desigualdade na educação para justificar essa disparidade. Porém, especialistas apontam que a ausência de uma rede de contatos – formada principalmente por conhecidos em posição de influência – pode ser determinante para que uma pessoa negra consiga do primeiro emprego a uma promoção.

É o tio que indica para um estágio, o amigo da escola que hoje é chefe e ajuda seu filho ou a informação sobre uma vaga de diretor da multinacional que só chegou a você naquele bate-papo com um ex-colega de MBA. São relações de ajuda mútua que podem beneficiar gerações. “Os negros têm menos acesso a redes de contato ou a um capital social influente para subirem na carreira. E em uma sociedade como a nossa isso é fundamental para uma indicação a um posto de comando”, afirma Emerson Rocha, doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB).

Atalho para o topo

Na prática, significa dizer que negros e brancos com a mesma experiência podem

ter desempenhos diferentes na hora de subir na carreira. Quem tem um bom capital social consegue mais rápido. Foi assim com a gerente Marisa. Ela lembra que começou ainda na infância sua rede de contatos com pessoas que poderiam influenciar sua carreira de forma positiva. Filha de mãe costureira e pai pintor de carros, ela cresceu entre Humaitá e Glória, bairros de classe média do Rio de Janeiro. Os pais optaram em morar na zona sul, em uma quitinete, para ficarem mais perto dos clientes.

Marisa passou a ter crianças de classe média como vizinhos e colegas de escola. “Sempre convivi com pessoas de nível social mais alto do que o meu. E o curioso é que eu tinha a exata dimensão do fosso que separava pessoas brancas de negras. Na zona sul, eu habitava um mundo branco. Mas ao subir o morro para os ensaios da escola de samba São Clemente, pertinho dali, eu me encontrava com muitas pessoas como eu”, relembra. “E a realidade delas era muito diferente.”

Formada em uma universidade privada em Botafogo, Marisa conseguiu o primeiro emprego como jornalista graças a uma tia costureira que tinha entre seus clientes pessoas influentes da alta sociedade carioca. Um dia, a tia chamou Marisa para ir ao lançamento de um livro. Foi a contragosto, mas lá foi apresentada a várias personalidades, e disso surgiu a vaga de estágio em uma rádio. Marisa saiu de lá 13 anos depois, como repórter especial e coordenadora de cobertura de eventos especiais, como o carnaval na Sapucaí.

“Depois dessa experiência, saí com um networking poderoso. Fui indicada para trabalhar como jornalista e apresentadora de TV, dividi bancada com comunicadores famosos, fui gerente em várias empresas públicas e privadas, tive uma empresa de comunicação com uma vasta carteira de clientes, trabalhei no comitê de candidatura dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio e lá conheci o executivo que viria a me indicar para a vaga que ocupo hoje”, conta. “Com isso, já são vários anos como coordenadora, gestora ou gerente. Além de minha capacidade técnica, acredito que estar perto das pessoas certas e ser indicada por elas foi fundamental para que eu chegasse aqui.”

Capital social

O sociólogo Emerson Rocha afirma que para ser bem-sucedido na carreira, o indivíduo depende de capitais pessoais, como o econômico, o cultural e o social. “O econômico refere-se ao dinheiro que você dispõe para custear sua sobrevivência e educação. O cultural vem da origem da família e o quanto ela influencia o próprio indivíduo – por exemplo, o fato de os pais terem curso superior aumenta a chance de seu filho também vir a ter”, diz. “Conviver com colegas e parentes na mesma situação também favorece. Agora, quando se é pobre, é bem provável que você conheça mais pessoas pobres, fazendo seu capital social ficar restrito a esse grupo. Assim, ao não ter uma rede social de recursos para acessar, você acaba ficando distante de boas oportunidades, como ocupar um cargo de gerência.”

Para incrementar o capital social, existem meios democráticos, como o ingresso em universidades públicas, onde é possível “travar contato e conhecimento com uma série de pessoas de classe média, média alta e até alta, e isso é uma boa oportunidade para formar capital social através dessas interações”, afirma Rocha. Capital social escasso afeta negros e brancos. A diferença, para Rocha, é que, em primeiro lugar, há muito mais negros entre os pobres. Numericamente, esses são mais afetados, pois representam três quartos da população menos favorecida, segundo o Instituto Econômico de Pesquisa Aplicada (Ipea). Ou seja, em cada quatro pobres, três são negros.

“Razões históricas como a escravidão explicam esse fosso. Os negros de hoje têm como antepassados gerações de pessoas que foram legal e institucionalmente discriminadas. Como se pode competir com o capital social de um branco que não passou por isso?”, questiona. Outro motivo, segundo o pesquisador, é que há fatores subjetivos cruciais para a formação de uma rede de capital social. Por exemplo, quando uma pessoa se aproxima de alguém, muitas vezes especula quais são as amizades – e oportunidades – que ela pode obter ao se conectar àquela pessoa. “É a base da lógica do networking. E, por já chegar ao mercado de trabalho com pouco capital social, o negro fica em grande desvantagem para fortalecer sua rede. O preconceito sugere que, com um negro, se está diante de alguém com baixo capital social”, afirma Rocha.

Inclusão

Para aumentar o número de executivos negros em seus quadros e, por consequência, ampliar o capital social de seus funcionários, cabe às empresas ficarem mais atentas à falta de diversidade, implantando políticas de maior inclusão de profissionais negros. A pesquisa do BID e do Ethos mostra que as organizações entrevistadas buscam promover a inclusão de diversos grupos em desvantagem. Porém, enquanto 41% têm políticas para pessoas com deficiência, 28% incluem as mulheres e apenas 8% têm ações afirmativas para negros.

“A grande desculpa das empresas é dizer que não conseguem equilibrar a diversidade porque não se acha negros no LinkedIn formados nas melhores universidades do país ou que falem inglês”, afirma Alexandra Loras, ex-consulesa da França e hoje CEO da Protagonizo, empresa de headhunting especializada em colocar no mercado profissionais negros com altas aptidões.

A Protagonizo reúne o cadastro de mais de 2 mil profissionais negros com nível superior e pós-graduação, formados nas melhores universidades do país e no exterior, e que falam até quatro idiomas. “Percebi que esses talentos negros com alto potencial sempre existiram. Só que as empresas não conseguem acessá-los porque dentro de seus quadros de RH têm pessoas brancas que não conhecem as ações e movimentos de pessoas negras. E mais: as pesquisas mostram que é muito natural e visceral que um branco escolha outro branco que, por exemplo, tenha estudado na mesma universidade de prestígio. Daí a ideia de me tornar headhunter para aumentar a presença da participação de negros no mercado de trabalho no Brasil”, afirma Loras.

“Até hoje as empresas só tiveram homens brancos vindos de universidades de elite exercendo cargos de executivos. É claro que eles não conseguem falar com o verdadeiro público brasileiro, que é formado em sua maioria por negros e mulheres. E isso é uma grande perda de dinheiro”, explica. A jornalista soteropolitana Monique Evelle, que aos 22 anos já foi eleita como uma das 25 mulheres negras mais influentes da internet, é outra empreendedora que viu na diversidade a chance de aumentar o número de profissionais negros altamente qualificados no mercado de trabalho.

Idealizadora do projeto Desabafo e dona da Evelle Consultoria, ela ajuda empresas que desejam não só diversificar seus quadros, como também implantar a cultura de direitos humanos. Para ela, é preciso desconstruir o imaginário social que acredita que apenas uma única vaga ocupada por um negro em algum lugar de destaque prova que o racismo no Brasil não existe. “A gente não está no mercado apenas para brigar por inclusão, porque, ao falar só disso, a gente continuará exercendo cargos subalternos”, opina.

“Nossa tentativa é fazer com que pessoas negras exerçam cargos de liderança e de gestão de forma proporcional às pessoas brancas. Não é porque uma organização tem entre seus executivos um único negro ou gay ou mulher que significa que esteja fazendo diversidade ou sendo amiga das minorias. É preciso haver proporcionalidade. Isso, sim, faz a grande diferença.”

Emerson Rocha vai além. “É claro que abrir-se para a diversidade não é uma questão de contratar uma pessoa desqualificada só porque é negra. Não é isso. É você contratar uma pessoa negra qualificada para aquele cargo. Com certeza, ela virá com gana de vencer, de agregar e, melhor, de produzir novos capitais sociais que podem ajudar na entrada de mais profissionais negros entre cargos de gerência no Brasil.”

 

Fonte: BBC